sábado, 13 de junho de 2015

O Jesus que eu pensava conhecer

Vamos supor que tenhamos ouvido os comentários de muita gente acerca de um homem desconhecido. Suponhamos que fiquemos perplexos ao ouvir alguns dizerem que ele era muito alto, e outros, muito baixo; que alguns se opuseram à sua obesidade, outros lamentaram sua magreza; que alguns o acharam muito moreno, outros, muito loiro. Uma explicação [...] seria talvez que tivesse uma aparência estranha.
Mas há outra explicação. Poderia ter a forma correta [...] Talvez (em suma) essa coisa extraordinária seja na realidade algo comum; pelo menos o normal, o âmago.
G. K. Chesterton

Conheci Jesus quando era criança, cantando “Sim, Cristo me ama” na escola dominical, fazendo orações antes de dormir ao “Querido Senhor Jesus”, vendo professores do clube bíblico movimentar figuras no flanelógrafo. Associei Jesus a bolachas açucaradas com suco e a estrelas douradas que os alunos assíduos recebiam.

Lembro-me especialmente de um quadro na escola dominical, uma pintura a óleo que pendia da parede de concreto. Jesus tinha cabelos longos, flutuantes, diferentes dos cabelos de qualquer outro homem que eu conhecesse. O rosto era comprido e bonito; a pele, macia e branca como leite. Usava um manto escarlate, e o artista havia-se esforçado por mostrar o jogo de luzes nas dobras. Nos braços, Jesus aninhava um cordeirinho adormecido.
Imaginava-me como aquele cordeiro, abençoado além da imaginação.
Há pouco li um livro que o velho Charles Dickens escreveu para resumir a vida de Jesus aos filhos. Nele, surge o retrato de uma doce governanta vitoriana que acaricia a cabeça das crianças e dá conselhos como: “Agora, crianças, devem obedecer à mamãe e ao papai”. De sobressalto, lembrei-me do quadro de Jesus que via na escola dominical, o qual me acompanhou por toda a infância: alguém bondoso e confortante, sem nenhuma aresta — um herói afável antes da época da televisão para crianças. Quando criança, sentia me confortado com essa pessoa.
Mais tarde, ao cursar a faculdade cristã, encontrei uma imagem diferente. Uma pintura popular naquele tempo apresentava Jesus de mãos estendidas, suspenso, num estilo que lembrava Dali, sobre o prédio das Nações Unidas, em Nova York. Ali estava o Cristo cósmico, aquele a quem todas as coisas são inerentes, o ponto imóvel do mundo em transformação. Essa figura mundial se afastara bastante do pastor da minha infância que carregava uma ovelha.
Ainda assim, os alunos falavam do Jesus cósmico com uma intimidade chocante. Os professores insistiam conosco para que desenvolvêssemos um “relacionamento com Jesus Cristo”, e nos cultos da faculdade cantávamos o nosso amor por Ele da forma mais íntima. Um hino falava sobre ouvir a sua voz em um jardim coberto de gotas de orvalho.
Os alunos, quando davam testemunho de sua fé, espontaneamente deixavam escapar frases como “O Senhor me disse...”. Minha fé mesmo pendia numa espécie de incerteza cética durante o tempo que passei ali. Eu estava desconfiado, confuso, sempre a questionar.
Olhando em retrospectiva para os meus anos de faculdade cristã, vejo que, apesar de todas as intimidades devocionais, foi ali que Jesus se me tornou estranho. Passou a ser um objeto de escrutínio. Memorizei nos evangelhos a lista dos 34 milagres específicos, mas não pude sentir o impacto de apenas um milagre que fosse. Aprendi as bem-aventuranças, mas nunca enfrentei o fato de que nenhum de nós — eu especialmente — poderia atinar com o sentido daquelas palavras misteriosas, muito menos viver por elas.
Um pouco depois, a década de sessenta (que na realidade me atingiu, junto com a maior parte da igreja, no começo da década de setenta) pôs tudo em questionamento.
Os “defeitos” de Jesus — o próprio termo teria sido um paradoxismo nos tranqüilos anos da década de cinqüenta — subitamente apareceram em cena, como se depositados ali por extraterrestres. Os discípulos de Jesus já não eram representantes bem-vestidos da classe média; alguns eram radicais relaxados, desmazelados. Teólogos da libertação começaram a venerar Jesus em pôsteres junto com Fidel Castro e Che Guevara.
Comecei a perceber que quase todos os retratos de Jesus, mesmo o Bom Pastor de minha escola dominical e o Jesus das Nações Unidas de minha faculdade cristã, mostravam-no usando bigode e barba, ambos estritamente banidos da faculdade. Agora perguntas que nunca me ocorreram na infância começaram a avultar em mim. Por exemplo: Como o ato de dizer às pessoas que fossem boas umas para com as outras pôde levar à crucificação de um homem? Que governo executaria o senhor Rogers ou o capitão Canguru? Thomas Paine dizia que nenhuma religião poderia ser verdadeiramente divina se contivesse qualquer doutrina que ofendesse a sensibilidade de uma criança. A cruz se qualificaria?
Em 1971 vi pela primeira vez o filme O evangelho segundo S. Mateus, dirigido pelo produtor italiano Pier Paolo Pasolini. Sua divulgação escandalizou não apenas a instituição religiosa, que dificilmente reconhecia Jesus na tela, mas também a comunidade do cinema, que conhecia Pasolini como homossexual declarado e marxista. Pasolini cinicamente dedicou o filme ao papa João XXIII, o homem indiretamente responsável por sua criação. Preso em um enorme congestionamento do tráfego durante uma visita papal em Florença, Pasolini se hospedou em um quarto de hotel onde, aborrecido, pegou um exemplar do Novo Testamento da mesinha de cabeceira e leu todo o livro de Mateus. O que descobriu naquelas páginas o deixou tão perplexo que decidiu fazer um filme utilizando, não o texto, mas a releitura atual do evangelho de Mateus.
O filme de Pasolini captou bem a reavaliação de Jesus que aconteceu na década de sessenta. Filmado no sul da Itália com um orçamento apertado, evoca em brancuras de giz e cinzas poeirentos um pouco do ambiente da Palestina em que Jesus viveu. Os fariseus usam turbantes altos, e os soldados de Herodes lembram, de certa forma os squadristi fascistas. Os discípulos agem como recrutas inexperientes e convencidos, mas o próprio Jesus, com um olhar firme e uma intensidade penetrante, parece destemido. As parábolas e outros monólogos, ele os desfere em frases resumidas a esmo, enquanto corre de um lugar para outro.
O impacto do filme de Pasolini só pode ser entendido por alguém que passou pela adolescência naquele período tumultuoso. Naquele tempo o filme tinha o poder de fazer calar multidões nos cinemas. Estudantes radicais perceberam que não eram os primeiros a proclamar uma mensagem dissonantemente antimaterialista, contra a hipocrisia, pró-paz e pró-amor.
Para mim, o filme ajudou a forçar uma reavaliação perturbadora da imagem que eu tinha de Jesus. Na aparência física, Jesus favorecia os que foram expulsos da faculdade cristã e foram rejeitados pela maioria das igrejas.
Entre os de sua época, adquiriu de certa forma uma reputação de “beberrão de vinho e glutão”. Os que tinham autoridade religiosa ou política consideravam-no criador de problemas, um perturbador da paz.
Ele falava e agia como um revolucionário, desprezando a fama, a família, a propriedade e outras medidas tradicionais do sucesso. Eu não podia me esquivar ao fato de que as palavras do filme de Pasolini estavam inteiramente de acordo com o evangelho de Mateus, mas sua mensagem não se encaixava claramente em minha concepção anterior de Jesus.
Mais ou menos nessa mesma época, um obreiro da “Young Life” [Vida Jovem] chamado Bill Milliken, que criou uma comunidade nas vizinhanças de uma cidade do interior, escreveu So long, sweet Jesus [Adeus, doce Jesus]. O título desse livro deu palavras à transformação que se operava dentro de mim. Naqueles dias eu trabalhava como editor da revista Campus Life, publicação oficial da Mocidade para Cristo nos Estados Unidos. Quem era esse Cristo, afinal, eu ficava imaginando. Enquanto escrevia e revisava ou preparava as obras dos outros, um pequenino demônio da dúvida pairava bem a meu lado. Você realmente crê nisso? Ou está simplesmente administrando a linha do partido, o que lhe pagam para você crer? Você se juntou à instituição conservadora, segura — versão moderna dos grupos que se sentiam ameaçados por Jesus?
Sempre que podia, evitava escrever diretamente sobre Jesus.
Quando liguei o meu computador hoje de manhã, o Microsoft Windows piscou a data, implicitamente reconhecendo que, quer você creia, quer não, o nascimento de Jesus foi tão importante que dividiu a história em duas partes. Tudo o que já aconteceu neste planeta encaixa-se em uma categoria de antes de Cristo ou depois de Cristo.
Richard Nixon empolgou-se em 1969 quando os astronautas da Apolo pousaram pela primeira vez na lua. “É o maior dia desde a Criação!”, exclamou o presidente, até que Billy Graham solenemente o lembrou do Natal e da Páscoa.
Segundo qualquer medida histórica, Graham estava certo.
Esse Galileu, que em vida falou a menos pessoas do que as que lotariam apenas um dos muitos estádios que Graham lotou, mudou o mundo mais do que qualquer outra pessoa.
Ele apresentou um novo campo de força na história, e agora mantém segura a fidelidade de um terço de todas as pessoas da terra.
Hoje, as pessoas utilizam-se do nome de Jesus até para praguejar. Como soaria estranho se, quando um homem de negócios perdesse uma tacada, gritasse “Thomas Jefferson!” ou se um encanador berrasse “Mahatma Gandhi!” quando sua ferramenta lhe esmagasse um dedo. Não podemos nos libertar desse homem Jesus.
“Mais de 1900 anos depois”, disse H. G. Wells, “um historiador como eu, que nem mesmo se intitula cristão, descobre o quadro centralizando-se irresistivelmente ao redor da vida e do caráter desse homem muito significativo [...] O teste do historiador para a grandeza de um indivíduo é ‘O que ele fez crescer?’. Ele levou os homens a pensar por linhas novas com um vigor que persistiu depois dele? Por esse teste Jesus está em primeiro lugar”. Você pode avaliar o tamanho de um navio que desapareceu de vista pela grande onda que deixa para trás.
E ainda assim não estou escrevendo um livro acerca de Jesus porque ele é um grande homem que mudou a história.
Não me sinto tentado a escrever acerca de Júlio César ou do imperador chinês que construiu a Grande Muralha. Sinto-me atraído por Jesus, irresistivelmente, porque ele se posicionou como o divisor de águas da vida — minha vida. “Digo-vos que todo aquele que me confessar diante dos homens também o Filho do homem o confessará diante dos anjos de Deus”, ele disse. De acordo com Jesus, o que penso dele e como reajo vai determinar meu destino por toda a eternidade.
Às vezes aceito a audaciosa reivindicação de Jesus sem questionar. Às vezes, confesso, fico imaginando que diferença faria à minha vida que um homem tivesse vivido há dois mil anos passados em um lugar chamado Galiléia. Posso resolver essa tensão interior entre o que duvida e o que ama?
Inclino-me a escrever para enfrentar minhas próprias dúvidas. Os títulos de meus livros — Deus sabe que sofremos e Decepcionado com Deus — me traem. Volto repetidas vezes para a mesma pergunta, como se mexendo em um antigo ferimento que nunca sara de todo. Deus se importa com a miséria aqui embaixo? Realmente temos importância para Deus?
Uma vez, durante um período de duas semanas, fiquei isolado por causa da neve numa cabana nas montanhas do Colorado. A nevasca fechou todas as estradas e, mais ou menos como Pasolini, eu não tinha nada para ler além da Bíblia. Passei por ela devagarinho, página por página. No Antigo Testamento me descobri identificando-me com aqueles que ousadamente se levantaram diante de Deus: Moisés, Jó, Jeremias, Habacuque, os salmistas. Conforme eu lia, sentia que estava assistindo a uma peça com personagens humanos que apresentavam suas vidas de pequeno triunfo e grande tragédia no palco, enquanto periodicamente gritavam para um diretor de cena invisível: “Você não sabe como é ficar aqui na frente!”. Jó foi mais inflamado, arremessando a Deus esta acusação: “Tens olhos de carne? Vês tu como vê o homem?”.
Com a mesma freqüência, posso ouvir o eco de uma voz retumbando longe do palco, por trás da cortina. “Sim, e você não sabe também como é ficar aqui atrás!”, ela dizia, para Moisés, para os profetas, mais audivelmente para Jó.
Contudo, quando cheguei aos evangelhos, as vozes acusadoras silenciaram. Deus, se posso empregar esta linguagem, “descobriu” como a vida é nos confins do planeta Teria. Jesus se familiarizou com o sofrimento em pessoa, em uma vida curta, perturbada, não muito longe das planícies poeirentas em que Jó havia sofrido. Das muitas razões para a encarnação, certamente uma foi para responder à acusação de Jó: “Tens olhos de carne?”. Durante algum tempo, Deus teve.
Se ao menos eu pudesse ouvir a voz saindo do redemoinho e, como Jó, manter uma conversa com o próprio Deus, penso às vezes. E talvez seja por isso que agora resolvi escrever acerca de Jesus. Deus não é mudo: a Palavra falou, não saída de um redemoinho, mas da laringe humana de um judeu palestino. Em Jesus, Deus se deitou na mesa de dissecação, por assim dizer, estendeu-se na postura da crucificação para o escrutínio de todos os céticos que já viveram. Entre os quais me incluo.
A visão de Cristo que abrigas
É da minha visão a maior inimiga:
A tua tem um grande nariz torto como o teu,
A minha tem um nariz arrebitado como o meu [...]
Ambos lemos a Bíblia noite e dia,
Onde você lê preto, branco eu lia.
WILLIAM BLAKE

Quando penso acerca de Jesus, uma analogia de Karl Barth me vem à mente. Um homem está em uma janela observando a rua. Lá fora, as pessoas estão fazendo sombra com as mãos sobre os olhos e olham para o céu. Por causa da arquitetura do edifício, o homem não consegue ver para o que estão apontando. Nós, que vivemos dois mil anos depois de Jesus, temos uma perspectiva semelhante à do homem que estava na janela. Ouvimos os gritos de exclamação.
Estudamos os gestos e as palavras nos evangelhos e os muitos livros que geraram. Mas, por mais que estiquemos o pescoço, não teremos um vislumbre de Jesus na carne.
Por esse motivo, como o poema de William Blake expressa bem, às vezes aqueles de nós que procuram Jesus não podem ver além do próprio nariz. A tribo Lakota, por exemplo, refere-se a Jesus como “o bezerro de búfalo de Deus”. O governo cubano distribui uma pintura de Jesus com uma bandoleira de carabina sobre o ombro. Durante as guerras religiosas com a França, os ingleses costumavam gritar: “O papa é francês, mas Jesus Cristo é inglês!”.
A cultura moderna turva o quadro ainda mais. Se você procurar nos livros acadêmicos disponíveis em uma livraria de seminário, vai encontrar um Jesus político revolucionário, um mágico que se casou com Maria Madalena, um galileu carismático, um rabino, um camponês judeu cético, um fariseu, um essênio antifariseu, um profeta escatológico, um “hippie em um mundo de yuppies elegantes” e o líder alucinogênico de um culto sagrado de LSD. Mestres sérios escreveram essas palavras, com poucas mostras de acanhamento.
Surgiram atletas com retratos criativos de Jesus a perturbar os estudiosos modernos. Norm Evans, ex-juiz dos “Miami Dolphins”, escreveu em seu livro On God’s squad [Na equipe de Deus]: “Eu lhes garanto que Cristo seria o cara mais duro que jamais participou deste jogo [...] Se vivesse hoje, eu o descreveria como um jogador da defesa de 1,90 m de altura e 100 kg que sempre faria as grandes jogadas e seria difícil, para os jogadores de ataque como eu, mantê-lo fora da linha de defesa”. Fritz Peterson, ex-jogador dos “New York Yankees”, imagina mais facilmente um Jesus com uniforme de beisebol: “Creio firmemente que, se Jesus Cristo estivesse escorregando para a segunda base, derrubaria o segundo homem de base no campo esquerdo para acabar com o jogo duplo. Cristo poderia não fazer um arremesso ilegal, mas jogaria duro dentro das regras”.
No meio de tanta confusão, como respondemos à simples pergunta: “Quem era Jesus?”. A história secular dá poucas dicas. Em uma deliciosa ironia, a figura que mudou a história mais do qualquer outro conseguiu escapar da atenção da maioria dos mestres e historiadores de seu próprio tempo. Até mesmo os quatro homens que escreveram os evangelhos omitiram muito do que interessaria aos leitores modernos, passando por cima de nove décimos de sua vida.
Uma vez que nenhum dedica uma palavra a descrição física, não sabemos nada acerca da aparência, ou da estatura, ou da cor dos olhos de Jesus. Detalhes de sua família são tão escassos que os estudiosos ainda debatem se tinha ou não irmãos e irmãs. Os fatos biográficos considerados essenciais para os leitores modernos simplesmente não preocuparam os escritores dos evangelhos.
Antes de iniciar este livro passei diversos meses em três bibliotecas de seminários — uma católica, uma protestante liberal, uma evangélica conservadora — lendo sobre Jesus.
Foi extremamente desanimador entrar no primeiro dia e ver não apenas prateleiras, mas paredes inteiras dedicadas aos livros acerca de Jesus. Um mestre da Universidade de Chicago calcula que mais tem sido escrito acerca de Jesus nos últimos vinte anos do que nos dezenove séculos anteriores. Eu me sentia como se o comentário hiperbólico do final do evangelho de João se tivesse tornado real: “Jesus fez muitas outras coisas. Se cada uma delas fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que seriam escritos”.
O aglomerado de pesquisas começou a ter um efeito entorpecente sobre mim. Li dezenas de escritos sobre a etimologia do nome Jesus, debates sobre as línguas que ele falava, debates sobre quanto tempo viveu em Nazaré, ou Cafarnaum, ou Belém. Qualquer imagem fiel transformava-se em um borrão obscuro, indistinto. Tenho um palpite de que o próprio Jesus ficaria consternado com muitas das descrições que eu estava lendo.
Ao mesmo tempo, com grande constância descobri que sempre que retornava aos próprios evangelhos, a neblina parecia desaparecer. J. B. Phillips escreveu, depois de traduzir e parafrasear os evangelhos: “Tenho lido, em grego e em latim, dezenas de mitos, mas não encontrei o mais tênue sabor de mito aqui [...] Nenhum homem teria conseguido escrever narrativas tão simples e tão vulneráveis como essas a não ser que um Evento real estivesse por trás delas”.
Alguns livros religiosos têm o cheiro desagradável da propaganda — mas não os evangelhos. Marcos registra em uma frase o que pode ser o acontecimento mais importante de toda a história, acontecimento que os teólogos lutam para interpretar com palavras como “propiciação, expiação, sacrifício”: “Dando um grande brado, Jesus expirou”. Cenas estranhas, imprevisíveis, aparecem, como a família e os vizinhos de Jesus tentando prendê-lo por suspeita de insanidade. Por que incluir tais cenas se é uma biografia que se está escrevendo? Os discípulos mais dedicados de Jesus geralmente se saíam com gestos como cocar a cabeça em perplexidade — Quem é este sujeito?—, mais frustrados que conspiratórios.
O próprio Jesus, quando desafiado, não ofereceu provas concludentes de sua identidade. Jogou dicas aqui e ali, a bem da verdade, mas também disse, depois de recorrer às evidências: “E bem-aventurado é aquele que não se escandalizar por minha causa”. Lendo as narrativas, é difícil encontrar alguém que em determinado momento não se tenha escandalizado. Os evangelhos jogam a decisão devolta para o leitor de maneira notável. Funcionam mais como uma história de detetive do tipo “quem-fez-isso” (ou, como Alister McGrath destacou, um “quem-foi-ele”) do que um desenho de ligar os pontos. Encontrei energia renovada nessa qualidade dos evangelhos.
Ocorre-me que todas as teorias distorcidas acerca de Jesus espontaneamente geradas desde o dia de sua morte só confirmam o tremendo risco que Deus assumiu quando se estendeu sobre a mesa de dissecação — risco que parece ter aceito de bom grado. Examinem-me. Testem-me. Tirem as suas conclusões.
O filme italiano La dolce vita começa com a cena de um helicóptero transportando uma estátua gigantesca de Jesus para Roma. Braços estendidos, Jesus pende de uma linga, e, enquanto o helicóptero passa pela paisagem, as pessoas começam a reconhecê-lo. “Ei, é Jesus!”, exclama um velho fazendeiro, pulando fora de seu trator para correr pelo campo. Mais perto de Roma, moças de biquíni, bronzeando se ao redor de uma piscina, acenam amigavelmente, e o piloto do helicóptero mergulha para olhar mais de perto. Silencioso, com uma expressão quase triste no rosto, o Jesus de concreto balança de maneira incongruente por cima do mundo moderno. Minha busca de Jesus tomou uma direção nova quando o cineasta Mel White me emprestou uma coleção de quinze filmes sobre a vida de Jesus. Iam de King of kings [Rei dos reis], o silencioso clássico de 1927 de Cecil B. DeMille, e os musicais como Godspell e Cotton Patch Gospel [Evangelho de remendo de algodão] até a notavelmente moderna apresentação franco-canadense Jesus of Montreal [Jesus de Montreal]. Critiquei esses filmes com cuidado, delineando-os cena por cena. Então, nos dois anos seguintes, ensinei a vida de Jesus a uma classe, utilizando os filmes como ponto de partida para nosso debate.
A classe funcionava assim. Quando chegávamos a um acontecimento mais importante da vida de Jesus, eu explorava os diversos filmes e deles selecionava sete ou oito enfoques que pareciam dignos de nota. Quando a aula começava, mostrava clipes de dois a quatro minutos de cada filme, começando com as interpretações cômicas e formais e trabalhando na direção das profundas ou evocativas. Descobrimos que o processo de ver o mesmo acontecimento por olhos de sete ou oito cineastas ajudava a arrancar a coloração de previsibilidade que se criara através dos anos de escola dominical e de leitura da Bíblia. Obviamente, algumas das interpretações dos filmes tinham de estar erradas — contradiziam-se flagrantemente —, mas quais? O que realmente aconteceu? Depois de reagir aos clipes dos filmes, voltávamos para as narrativas dos evangelhos, e a discussão começava.
Essa classe se reunia na Igreja “LaSalle”, congregação animada no centro de Chicago composta de Ph.Ds do Noroeste bem como de homens sem lar que se utilizavam daquela hora em recinto aquecido como oportunidade para dormir um pouco. Graças sobretudo à classe, gradualmente passei por uma transformação da visão que tinha de Jesus. Walter Kasper dizia: “Noções extremas [...] vêem Deus vestido de Papai Noel, ou introduzindo-se na natureza humana como alguém que veste jeans a fim de consertar o mundo depois de uma avaria. A doutrina bíblica ou eclesiástica, segundo a qual Jesus foi um homem completo, com um intelecto humano e liberdade humana, não parece prevalecer na cabeça dos cristãos comuns”. Não prevalecia em minha cabeça, admito, até que lecionei na classe da Igreja “LaSalle” e procurei encontrar a pessoa histórica de Jesus.
Essencialmente, os filmes ajudaram a restaurar para mim o caráter humano de Jesus. Os credos repetidos nas igrejas falam da preexistência eterna de Cristo e da gloriosa vida após a morte, mas desprezam sobremaneira a sua carreira terrena. Os próprios evangelhos foram escritos anos depois da morte de Jesus, desde a Páscoa, tratando de acontecimentos tão distantes dos escritores como a Guerra da Coréia para nós hoje. Os filmes ajudaram-me a retroceder mais, para mais perto de um entendimento da vida de Jesus conforme vista pelos de sua época. Como teria sido ouvir atentamente a rispidez da multidão? Como eu teria reagido a esse homem? Eu o teria convidado para jantar, como Zaqueu? Ter-me-ia afastado tristemente como o jovem legislador? Eu o teria traído como Judas e Pedro?
Jesus, descobri, tinha uma pequena semelhança com a figura do Senhor Rogers que conheci na escola dominical, sendo notavelmente diverso da pessoa que estudei na faculdade cristã. Uma coisa eu sei, ele era muito menos manso. Em minha primeira imagem, percebi, a personalidade de Jesus combinava com a do Sr. Spock de Jornada nas estrelas: permanecia calmo, sereno e controlado enquanto caminhava como um robô entre os seres humanos nervosos na nave espacial Terra. Não foi o que encontrei descrito nos evangelhos e nos melhores filmes. Outras pessoas influíram em Jesus profundamente: a obstinação o frustrava, a justiça própria o enfurecia, a fé simples o entusiasmava. Na verdade, ele parecia mais emotivo e espontâneo do que as pessoas comuns, não menos. Mais passional, não menos.
Quanto mais eu estudava Jesus, mais difícil se tornava classificá-lo. Ele falou pouco sobre a ocupação romana, o assunto principal das conversas de seus conterrâneos, mas pegou um chicote para expulsar do templo judeu os pequenos aproveitadores. Insistia na obediência à lei de Moisés, enquanto adquiria a reputação de transgressor da lei. Poderia ser tomado de simpatia por um estrangeiro, mas afastou o melhor amigo com a dura repreensão: “Para trás de mim, Satanás!”. Tinha opiniões inflexíveis sobre os homens ricos e as mulheres de vida fácil, mas ambos os tipos desfrutavam de sua companhia.
Um dia os milagres pareciam fluir de Jesus; no dia seguinte seu poder ficava bloqueado pela falta de fé das pessoas. Um dia falava em pormenores sobre a segunda vinda; no outro, não sabia o dia nem a hora. Fugiu de ser preso uma vez e marchou inexoravelmente rumo à prisão em outra. Falou eloqüentemente sobre a pacificação, e depois disse a seus discípulos que procurassem espadas. Suas reivindicações extravagantes colocaram-no no centro da controvérsia, mas, quando fazia alguma coisa realmente miraculosa, procurava ocultá-lo. Como disse Walter Wink, se Jesus nunca tivesse vivido não poderíamos tê-lo inventado.
Duas palavras ninguém pensaria em aplicar ao Jesus dos evangelhos: enfadonho e previsível. Então, por que a igreja domou esse caráter — “aparou”, nas palavras de Dorothy Sayers, “com muita eficiência as garras do Leão de Judá, declarando-o um bichinho de estimação adequadamente domesticado para pálidos vigários e velhas senhoras piedosas”?
Barbara Tuchman, a historiadora que recebeu o prêmio Pulitzer, insiste em uma regra para escrever história: nada de “pequenas previsões”. Quando ela estava escrevendo sobre a Batalha de Bulge, na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, resistiu à tentação de incluir um aparte: “Naturalmente todos sabemos como isso acabou”. Na verdade, as tropas aliadas envolvidas na Batalha, de Bulge não sabiam como a batalha terminaria. Pela aparência das coisas, poderiam bem ser escorraçadas de volta para as praias da Normandia, deonde tinham vindo. Um historiador que deseja reter qualquer semelhança da tensão e do drama nos acontecimentos conforme eles se desenrolam não se atreve a fazer previsões de outro ponto de vista que tudo vê. Se o fizer, toda a tensão se desfará. Antes, um bom historiador recria para o leitor as condições da história que está sendo descrita, dando a impressão de que “você esteve lá”.
Esse é, concluí, o problema da maioria de nossas obras e idéias sobre Jesus. Lemos os evangelhos pelas lentes de pequenas previsões de concílios eclesiásticos como o de Nicéia e o de Calcedônia, mediante as tentativas estudadas da igreja de lhe dar sentido.
Jesus foi um ser humano, judeu da Galiléia com nome e família, pessoa de certo modo exatamente igual a todos. Mas, de outro modo, era um pouco diferente do que qualquer um que já tenha vivido na terra antes. A igreja levou cinco séculos de debates ativos para concordar sobre algum tipo de equilíbrio epistemológico entre “como todo mundo” e “alguma coisa diferente”. Como disse Pascal: “A Igreja tem tido tanta dificuldade em mostrar que Jesus Cristo foi homem, contra aqueles que o negaram, como em mostrar que ele foi Deus; e as probabilidades são igualmente grandes”.
Deixem-me tornar claro que aceito os credos. Mas neste livro espero retroceder para além dessas formulações.
Espero, até onde é possível, olhar para a vida de Jesus “de baixo”, como um espectador, um dos muitos que o seguiram.
Se eu fosse um cineasta japonês, com cinqüenta milhões de dólares e nenhum roteiro além do texto dos evangelhos, que tipo de filme eu faria? Espero, nas palavras de Lutero, “introduzir Cristo o mais profundamente possível na carne”.
No processo, às vezes me tenho sentido como um turista andando ao redor de um grande monumento, admirado e dominado. Ando ao redor do monumento de Jesus inspecionando suas partes constituintes — as histórias do nascimento, os ensinamentos, os milagres, os inimigos e os discípulos — a fim de refletir sobre isso e tentar compreender o homem que mudou a história.
Outras vezes me tenho sentido como um restaurador de obras de arte estendido no andaime da Capela Cistina, raspando o encardido da história com um produto de limpeza. Se a sujeira está dura demais, será que vou descobrir o original por baixo de todas essas camadas?
Neste livro tento contar a história de Jesus, não a minha própria história. Inevitavelmente, entretanto, uma busca de Jesus acaba sendo a busca do próprio eu. Ninguém que encontre Jesus continua sendo o mesmo. Descobri que as dúvidas que me afligiam vindas de muitas fontes — da ciência, da religião comparada, de um defeito inato de ceticismo, da aversão à igreja — assumiram uma nova luz quando eu trouxe essas dúvidas ao homem chamado Jesus.
Para dizer mais a esta altura, neste primeiro capítulo, eu transgrediria o princípio predileto de Barbara Tuchman.

Philip Yancey

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