Vamos supor que tenhamos ouvido os
comentários de muita gente acerca de um homem desconhecido. Suponhamos que
fiquemos perplexos ao ouvir alguns dizerem que ele era muito alto, e outros,
muito baixo; que alguns se opuseram à sua obesidade, outros lamentaram sua
magreza; que alguns o acharam muito moreno, outros, muito loiro. Uma explicação
[...] seria talvez que tivesse uma aparência estranha.
Mas há outra explicação. Poderia
ter a forma correta [...] Talvez (em suma) essa coisa extraordinária seja na
realidade algo comum; pelo menos o normal, o âmago.
G.
K. Chesterton
Conheci Jesus quando era criança,
cantando “Sim, Cristo me ama” na escola dominical, fazendo orações antes de
dormir ao “Querido Senhor Jesus”, vendo professores do clube bíblico movimentar
figuras no flanelógrafo. Associei Jesus a bolachas açucaradas com suco e a
estrelas douradas que os alunos assíduos recebiam.
Lembro-me especialmente de um
quadro na escola dominical, uma pintura a óleo que pendia da parede de
concreto. Jesus tinha cabelos longos, flutuantes, diferentes dos cabelos de
qualquer outro homem que eu conhecesse. O rosto era comprido e bonito; a pele,
macia e branca como leite. Usava um manto escarlate, e o artista havia-se
esforçado por mostrar o jogo de luzes nas dobras. Nos braços, Jesus aninhava um
cordeirinho adormecido.
Imaginava-me como aquele
cordeiro, abençoado além da imaginação.
Há pouco li um livro que o velho
Charles Dickens escreveu para resumir a vida de Jesus aos filhos. Nele, surge o
retrato de uma doce governanta vitoriana que acaricia a cabeça das crianças e
dá conselhos como: “Agora, crianças, devem obedecer à mamãe e ao papai”. De
sobressalto, lembrei-me do quadro de Jesus que via na escola dominical, o qual
me acompanhou por toda a infância: alguém bondoso e confortante, sem nenhuma
aresta — um herói afável antes da época da televisão para crianças. Quando
criança, sentia me confortado com essa pessoa.
Mais tarde, ao cursar a faculdade
cristã, encontrei uma imagem diferente. Uma pintura popular naquele tempo
apresentava Jesus de mãos estendidas, suspenso, num estilo que lembrava Dali,
sobre o prédio das Nações Unidas, em Nova York. Ali estava o Cristo cósmico,
aquele a quem todas as coisas são inerentes, o ponto imóvel do mundo em
transformação. Essa figura mundial se afastara bastante do pastor da minha
infância que carregava uma ovelha.
Ainda assim, os alunos falavam do
Jesus cósmico com uma intimidade chocante. Os professores insistiam conosco
para que desenvolvêssemos um “relacionamento com Jesus Cristo”, e nos cultos da
faculdade cantávamos o nosso amor por Ele da forma mais íntima. Um hino falava
sobre ouvir a sua voz em um jardim coberto de gotas de orvalho.
Os alunos, quando davam
testemunho de sua fé, espontaneamente deixavam escapar frases como “O Senhor me
disse...”. Minha fé mesmo pendia numa espécie de incerteza cética durante o
tempo que passei ali. Eu estava desconfiado, confuso, sempre a questionar.
Olhando em retrospectiva para os
meus anos de faculdade cristã, vejo que, apesar de todas as intimidades
devocionais, foi ali que Jesus se me tornou estranho. Passou a ser um objeto de
escrutínio. Memorizei nos evangelhos a lista dos 34 milagres específicos, mas
não pude sentir o impacto de apenas um milagre que fosse. Aprendi as
bem-aventuranças, mas nunca enfrentei o fato de que nenhum de nós — eu
especialmente — poderia atinar com o sentido daquelas palavras misteriosas,
muito menos viver por elas.
Um pouco depois, a década de
sessenta (que na realidade me atingiu, junto com a maior parte da igreja, no
começo da década de setenta) pôs tudo em questionamento.
Os “defeitos” de Jesus — o
próprio termo teria sido um paradoxismo nos tranqüilos anos da década de
cinqüenta — subitamente apareceram em cena, como se depositados ali por
extraterrestres. Os discípulos de Jesus já não eram representantes bem-vestidos
da classe média; alguns eram radicais relaxados, desmazelados. Teólogos da
libertação começaram a venerar Jesus em pôsteres junto com Fidel Castro e Che
Guevara.
Comecei a perceber que quase
todos os retratos de Jesus, mesmo o Bom Pastor de minha escola dominical e o
Jesus das Nações Unidas de minha faculdade cristã, mostravam-no usando bigode e
barba, ambos estritamente banidos da faculdade. Agora perguntas que nunca me
ocorreram na infância começaram a avultar em mim. Por exemplo: Como o ato de
dizer às pessoas que fossem boas umas para com as outras pôde levar à
crucificação de um homem? Que governo executaria o senhor Rogers ou o capitão
Canguru? Thomas Paine dizia que nenhuma religião poderia ser verdadeiramente
divina se contivesse qualquer doutrina que ofendesse a sensibilidade de uma
criança. A cruz se qualificaria?
Em 1971 vi pela primeira vez o
filme O evangelho segundo S. Mateus, dirigido pelo produtor italiano Pier Paolo
Pasolini. Sua divulgação escandalizou não apenas a instituição religiosa, que
dificilmente reconhecia Jesus na tela, mas também a comunidade do cinema, que conhecia
Pasolini como homossexual declarado e marxista. Pasolini cinicamente dedicou o
filme ao papa João XXIII, o homem indiretamente responsável por sua criação.
Preso em um enorme congestionamento do tráfego durante uma visita papal em
Florença, Pasolini se hospedou em um quarto de hotel onde, aborrecido, pegou um
exemplar do Novo Testamento da mesinha de cabeceira e leu todo o livro de
Mateus. O que descobriu naquelas páginas o deixou tão perplexo que decidiu
fazer um filme utilizando, não o texto, mas a releitura atual do evangelho de
Mateus.
O filme de Pasolini captou bem a
reavaliação de Jesus que aconteceu na década de sessenta. Filmado no sul da
Itália com um orçamento apertado, evoca em brancuras de giz e cinzas poeirentos
um pouco do ambiente da Palestina em que Jesus viveu. Os fariseus usam
turbantes altos, e os soldados de Herodes lembram, de certa forma os squadristi
fascistas. Os discípulos agem como recrutas inexperientes e convencidos, mas o
próprio Jesus, com um olhar firme e uma intensidade penetrante, parece
destemido. As parábolas e outros monólogos, ele os desfere em frases resumidas
a esmo, enquanto corre de um lugar para outro.
O impacto do filme de Pasolini só
pode ser entendido por alguém que passou pela adolescência naquele período tumultuoso.
Naquele tempo o filme tinha o poder de fazer calar multidões nos cinemas.
Estudantes radicais perceberam que não eram os primeiros a proclamar uma
mensagem dissonantemente antimaterialista, contra a hipocrisia, pró-paz e
pró-amor.
Para mim, o filme ajudou a forçar
uma reavaliação perturbadora da imagem que eu tinha de Jesus. Na aparência
física, Jesus favorecia os que foram expulsos da faculdade cristã e foram
rejeitados pela maioria das igrejas.
Entre os de sua época, adquiriu
de certa forma uma reputação de “beberrão de vinho e glutão”. Os que tinham
autoridade religiosa ou política consideravam-no criador de problemas, um
perturbador da paz.
Ele falava e agia como um
revolucionário, desprezando a fama, a família, a propriedade e outras medidas
tradicionais do sucesso. Eu não podia me esquivar ao fato de que as palavras do
filme de Pasolini estavam inteiramente de acordo com o evangelho de Mateus, mas
sua mensagem não se encaixava claramente em minha concepção anterior de Jesus.
Mais ou menos nessa mesma época,
um obreiro da “Young Life” [Vida Jovem] chamado Bill Milliken, que criou uma
comunidade nas vizinhanças de uma cidade do interior, escreveu So long, sweet
Jesus [Adeus, doce Jesus]. O título desse livro deu palavras à transformação
que se operava dentro de mim. Naqueles dias eu trabalhava como editor da
revista Campus Life, publicação oficial da Mocidade para Cristo nos Estados
Unidos. Quem era esse Cristo, afinal, eu ficava imaginando. Enquanto escrevia e
revisava ou preparava as obras dos outros, um pequenino demônio da dúvida
pairava bem a meu lado. Você realmente crê nisso? Ou está simplesmente
administrando a linha do partido, o que lhe pagam para você crer? Você se
juntou à instituição conservadora, segura — versão moderna dos grupos que se
sentiam ameaçados por Jesus?
Sempre que podia, evitava
escrever diretamente sobre Jesus.
Quando liguei o meu computador
hoje de manhã, o Microsoft Windows piscou a data, implicitamente reconhecendo
que, quer você creia, quer não, o nascimento de Jesus foi tão importante que
dividiu a história em duas partes. Tudo o que já aconteceu neste planeta
encaixa-se em uma categoria de antes de Cristo ou depois de Cristo.
Richard Nixon empolgou-se em 1969
quando os astronautas da Apolo pousaram pela primeira vez na lua. “É o maior
dia desde a Criação!”, exclamou o presidente, até que Billy Graham solenemente
o lembrou do Natal e da Páscoa.
Segundo qualquer medida
histórica, Graham estava certo.
Esse Galileu, que em vida falou a
menos pessoas do que as que lotariam apenas um dos muitos estádios que Graham
lotou, mudou o mundo mais do que qualquer outra pessoa.
Ele apresentou um novo campo de
força na história, e agora mantém segura a fidelidade de um terço de todas as
pessoas da terra.
Hoje, as pessoas utilizam-se do
nome de Jesus até para praguejar. Como soaria estranho se, quando um homem de
negócios perdesse uma tacada, gritasse “Thomas Jefferson!” ou se um encanador
berrasse “Mahatma Gandhi!” quando sua ferramenta lhe esmagasse um dedo. Não
podemos nos libertar desse homem Jesus.
“Mais de 1900 anos depois”, disse
H. G. Wells, “um historiador como eu, que nem mesmo se intitula cristão,
descobre o quadro centralizando-se irresistivelmente ao redor da vida e do
caráter desse homem muito significativo [...] O teste do historiador para a
grandeza de um indivíduo é ‘O que ele fez crescer?’. Ele levou os homens a
pensar por linhas novas com um vigor que persistiu depois dele? Por esse teste
Jesus está em primeiro lugar”. Você pode avaliar o tamanho de um navio que
desapareceu de vista pela grande onda que deixa para trás.
E ainda assim não estou
escrevendo um livro acerca de Jesus porque ele é um grande homem que mudou a
história.
Não me sinto tentado a escrever
acerca de Júlio César ou do imperador chinês que construiu a Grande Muralha.
Sinto-me atraído por Jesus, irresistivelmente, porque ele se posicionou como o
divisor de águas da vida — minha vida. “Digo-vos que todo aquele que me
confessar diante dos homens também o Filho do homem o confessará diante dos anjos
de Deus”, ele disse. De acordo com Jesus, o que penso dele e como reajo vai
determinar meu destino por toda a eternidade.
Às vezes aceito a audaciosa
reivindicação de Jesus sem questionar. Às vezes, confesso, fico imaginando que
diferença faria à minha vida que um homem tivesse vivido há dois mil anos
passados em um lugar chamado Galiléia. Posso resolver essa tensão interior
entre o que duvida e o que ama?
Inclino-me a escrever para
enfrentar minhas próprias dúvidas. Os títulos de meus livros — Deus sabe que
sofremos e Decepcionado com Deus — me traem. Volto repetidas vezes para a mesma
pergunta, como se mexendo em um antigo ferimento que nunca sara de todo. Deus
se importa com a miséria aqui embaixo? Realmente temos importância para Deus?
Uma vez, durante um período de
duas semanas, fiquei isolado por causa da neve numa cabana nas montanhas do
Colorado. A nevasca fechou todas as estradas e, mais ou menos como Pasolini, eu
não tinha nada para ler além da Bíblia. Passei por ela devagarinho, página por
página. No Antigo Testamento me descobri identificando-me com aqueles que
ousadamente se levantaram diante de Deus: Moisés, Jó, Jeremias, Habacuque, os
salmistas. Conforme eu lia, sentia que estava assistindo a uma peça com
personagens humanos que apresentavam suas vidas de pequeno triunfo e grande
tragédia no palco, enquanto periodicamente gritavam para um diretor de cena
invisível: “Você não sabe como é ficar aqui na frente!”. Jó foi mais inflamado,
arremessando a Deus esta acusação: “Tens olhos de carne? Vês tu como vê o
homem?”.
Com a mesma freqüência, posso
ouvir o eco de uma voz retumbando longe do palco, por trás da cortina. “Sim, e
você não sabe também como é ficar aqui atrás!”, ela dizia, para Moisés, para os
profetas, mais audivelmente para Jó.
Contudo, quando cheguei aos
evangelhos, as vozes acusadoras silenciaram. Deus, se posso empregar esta
linguagem, “descobriu” como a vida é nos confins do planeta Teria. Jesus se
familiarizou com o sofrimento em pessoa, em uma vida curta, perturbada, não
muito longe das planícies poeirentas em que Jó havia sofrido. Das muitas razões
para a encarnação, certamente uma foi para responder à acusação de Jó: “Tens
olhos de carne?”. Durante algum tempo, Deus teve.
Se ao menos eu pudesse ouvir a
voz saindo do redemoinho e, como Jó, manter uma conversa com o próprio Deus,
penso às vezes. E talvez seja por isso que agora resolvi escrever acerca de
Jesus. Deus não é mudo: a Palavra falou, não saída de um redemoinho, mas da
laringe humana de um judeu palestino. Em Jesus, Deus se deitou na mesa de
dissecação, por assim dizer, estendeu-se na postura da crucificação para o
escrutínio de todos os céticos que já viveram. Entre os quais me incluo.
A visão de Cristo
que abrigas
É da minha visão
a maior inimiga:
A tua tem um
grande nariz torto como o teu,
A minha tem um
nariz arrebitado como o meu [...]
Ambos lemos a
Bíblia noite e dia,
Onde você lê
preto, branco eu lia.
WILLIAM BLAKE
Quando penso acerca de Jesus, uma
analogia de Karl Barth me vem à mente. Um homem está em uma janela observando a
rua. Lá fora, as pessoas estão fazendo sombra com as mãos sobre os olhos e
olham para o céu. Por causa da arquitetura do edifício, o homem não consegue
ver para o que estão apontando. Nós, que vivemos dois mil anos depois de Jesus,
temos uma perspectiva semelhante à do homem que estava na janela. Ouvimos os
gritos de exclamação.
Estudamos os gestos e as palavras
nos evangelhos e os muitos livros que geraram. Mas, por mais que estiquemos o
pescoço, não teremos um vislumbre de Jesus na carne.
Por esse motivo, como o poema de
William Blake expressa bem, às vezes aqueles de nós que procuram Jesus não
podem ver além do próprio nariz. A tribo Lakota, por exemplo, refere-se a Jesus
como “o bezerro de búfalo de Deus”. O governo cubano distribui uma pintura de
Jesus com uma bandoleira de carabina sobre o ombro. Durante as guerras
religiosas com a França, os ingleses costumavam gritar: “O papa é francês, mas
Jesus Cristo é inglês!”.
A cultura moderna turva o quadro
ainda mais. Se você procurar nos livros acadêmicos disponíveis em uma livraria
de seminário, vai encontrar um Jesus político revolucionário, um mágico que se
casou com Maria Madalena, um galileu carismático, um rabino, um camponês judeu
cético, um fariseu, um essênio antifariseu, um profeta escatológico, um “hippie
em um mundo de yuppies elegantes” e o líder alucinogênico de um culto sagrado
de LSD. Mestres sérios escreveram essas palavras, com poucas mostras de
acanhamento.
Surgiram atletas com retratos
criativos de Jesus a perturbar os estudiosos modernos. Norm Evans, ex-juiz dos
“Miami Dolphins”, escreveu em seu livro On God’s squad [Na equipe de Deus]: “Eu
lhes garanto que Cristo seria o cara mais duro que jamais participou deste jogo
[...] Se vivesse hoje, eu o descreveria como um jogador da defesa de 1,90 m de
altura e 100 kg que sempre faria as grandes jogadas e seria difícil, para os
jogadores de ataque como eu, mantê-lo fora da linha de defesa”. Fritz Peterson,
ex-jogador dos “New York Yankees”, imagina mais facilmente um Jesus com
uniforme de beisebol: “Creio firmemente que, se Jesus Cristo estivesse
escorregando para a segunda base, derrubaria o segundo homem de base no campo
esquerdo para acabar com o jogo duplo. Cristo poderia não fazer um arremesso
ilegal, mas jogaria duro dentro das regras”.
No meio de tanta confusão, como
respondemos à simples pergunta: “Quem era Jesus?”. A história secular dá poucas
dicas. Em uma deliciosa ironia, a figura que mudou a história mais do qualquer
outro conseguiu escapar da atenção da maioria dos mestres e historiadores de
seu próprio tempo. Até mesmo os quatro homens que escreveram os evangelhos
omitiram muito do que interessaria aos leitores modernos, passando por cima de
nove décimos de sua vida.
Uma vez que nenhum dedica uma
palavra a descrição física, não sabemos nada acerca da aparência, ou da
estatura, ou da cor dos olhos de Jesus. Detalhes de sua família são tão
escassos que os estudiosos ainda debatem se tinha ou não irmãos e irmãs. Os
fatos biográficos considerados essenciais para os leitores modernos
simplesmente não preocuparam os escritores dos evangelhos.
Antes de iniciar este livro
passei diversos meses em três bibliotecas de seminários — uma católica, uma
protestante liberal, uma evangélica conservadora — lendo sobre Jesus.
Foi extremamente desanimador
entrar no primeiro dia e ver não apenas prateleiras, mas paredes inteiras
dedicadas aos livros acerca de Jesus. Um mestre da Universidade de Chicago
calcula que mais tem sido escrito acerca de Jesus nos últimos vinte anos do que
nos dezenove séculos anteriores. Eu me sentia como se o comentário hiperbólico
do final do evangelho de João se tivesse tornado real: “Jesus fez muitas outras
coisas. Se cada uma delas fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo
poderia conter os livros que seriam escritos”.
O aglomerado de pesquisas começou
a ter um efeito entorpecente sobre mim. Li dezenas de escritos sobre a
etimologia do nome Jesus, debates sobre as línguas que ele falava, debates
sobre quanto tempo viveu em Nazaré, ou Cafarnaum, ou Belém. Qualquer imagem
fiel transformava-se em um borrão obscuro, indistinto. Tenho um palpite de que
o próprio Jesus ficaria consternado com muitas das descrições que eu estava
lendo.
Ao mesmo tempo, com grande
constância descobri que sempre que retornava aos próprios evangelhos, a neblina
parecia desaparecer. J. B. Phillips escreveu, depois de traduzir e parafrasear
os evangelhos: “Tenho lido, em grego e em latim, dezenas de mitos, mas não
encontrei o mais tênue sabor de mito aqui [...] Nenhum homem teria conseguido
escrever narrativas tão simples e tão vulneráveis como essas a não ser que um
Evento real estivesse por trás delas”.
Alguns livros religiosos têm o
cheiro desagradável da propaganda — mas não os evangelhos. Marcos registra em
uma frase o que pode ser o acontecimento mais importante de toda a história,
acontecimento que os teólogos lutam para interpretar com palavras como
“propiciação, expiação, sacrifício”: “Dando um grande brado, Jesus expirou”.
Cenas estranhas, imprevisíveis, aparecem, como a família e os vizinhos de Jesus
tentando prendê-lo por suspeita de insanidade. Por que incluir tais cenas se é
uma biografia que se está escrevendo? Os discípulos mais dedicados de Jesus
geralmente se saíam com gestos como cocar a cabeça em perplexidade — Quem é
este sujeito?—, mais frustrados que conspiratórios.
O próprio Jesus, quando
desafiado, não ofereceu provas concludentes de sua identidade. Jogou dicas aqui
e ali, a bem da verdade, mas também disse, depois de recorrer às evidências: “E
bem-aventurado é aquele que não se escandalizar por minha causa”. Lendo as
narrativas, é difícil encontrar alguém que em determinado momento não se tenha
escandalizado. Os evangelhos jogam a decisão devolta para o leitor de maneira
notável. Funcionam mais como uma história de detetive do tipo “quem-fez-isso”
(ou, como Alister McGrath destacou, um “quem-foi-ele”) do que um desenho de
ligar os pontos. Encontrei energia renovada nessa qualidade dos evangelhos.
Ocorre-me que todas as teorias
distorcidas acerca de Jesus espontaneamente geradas desde o dia de sua morte só
confirmam o tremendo risco que Deus assumiu quando se estendeu sobre a mesa de
dissecação — risco que parece ter aceito de bom grado. Examinem-me. Testem-me.
Tirem as suas conclusões.
O filme italiano La dolce vita
começa com a cena de um helicóptero transportando uma estátua gigantesca de
Jesus para Roma. Braços estendidos, Jesus pende de uma linga, e, enquanto o
helicóptero passa pela paisagem, as pessoas começam a reconhecê-lo. “Ei, é
Jesus!”, exclama um velho fazendeiro, pulando fora de seu trator para correr
pelo campo. Mais perto de Roma, moças de biquíni, bronzeando se ao redor de uma
piscina, acenam amigavelmente, e o piloto do helicóptero mergulha para olhar
mais de perto. Silencioso, com uma expressão quase triste no rosto, o Jesus de
concreto balança de maneira incongruente por cima do mundo moderno. Minha busca
de Jesus tomou uma direção nova quando o cineasta Mel White me emprestou uma
coleção de quinze filmes sobre a vida de Jesus. Iam de King of kings [Rei dos
reis], o silencioso clássico de 1927 de Cecil B. DeMille, e os musicais como
Godspell e Cotton Patch Gospel [Evangelho de remendo de algodão] até a
notavelmente moderna apresentação franco-canadense Jesus of Montreal [Jesus de
Montreal]. Critiquei esses filmes com cuidado, delineando-os cena por cena.
Então, nos dois anos seguintes, ensinei a vida de Jesus a uma classe,
utilizando os filmes como ponto de partida para nosso debate.
A classe funcionava assim. Quando
chegávamos a um acontecimento mais importante da vida de Jesus, eu explorava os
diversos filmes e deles selecionava sete ou oito enfoques que pareciam dignos
de nota. Quando a aula começava, mostrava clipes de dois a quatro minutos de cada
filme, começando com as interpretações cômicas e formais e trabalhando na
direção das profundas ou evocativas. Descobrimos que o processo de ver o mesmo
acontecimento por olhos de sete ou oito cineastas ajudava a arrancar a
coloração de previsibilidade que se criara através dos anos de escola dominical
e de leitura da Bíblia. Obviamente, algumas das interpretações dos filmes
tinham de estar erradas — contradiziam-se flagrantemente —, mas quais? O que realmente
aconteceu? Depois de reagir aos clipes dos filmes, voltávamos para as
narrativas dos evangelhos, e a discussão começava.
Essa classe se reunia na Igreja
“LaSalle”, congregação animada no centro de Chicago composta de Ph.Ds do
Noroeste bem como de homens sem lar que se utilizavam daquela hora em recinto
aquecido como oportunidade para dormir um pouco. Graças sobretudo à classe,
gradualmente passei por uma transformação da visão que tinha de Jesus. Walter
Kasper dizia: “Noções extremas [...] vêem Deus vestido de Papai Noel, ou
introduzindo-se na natureza humana como alguém que veste jeans a fim de
consertar o mundo depois de uma avaria. A doutrina bíblica ou eclesiástica,
segundo a qual Jesus foi um homem completo, com um intelecto humano e liberdade
humana, não parece prevalecer na cabeça dos cristãos comuns”. Não prevalecia em
minha cabeça, admito, até que lecionei na classe da Igreja “LaSalle” e procurei
encontrar a pessoa histórica de Jesus.
Essencialmente, os filmes
ajudaram a restaurar para mim o caráter humano de Jesus. Os credos repetidos
nas igrejas falam da preexistência eterna de Cristo e da gloriosa vida após a
morte, mas desprezam sobremaneira a sua carreira terrena. Os próprios
evangelhos foram escritos anos depois da morte de Jesus, desde a Páscoa,
tratando de acontecimentos tão distantes dos escritores como a Guerra da Coréia
para nós hoje. Os filmes ajudaram-me a retroceder mais, para mais perto de um
entendimento da vida de Jesus conforme vista pelos de sua época. Como teria
sido ouvir atentamente a rispidez da multidão? Como eu teria reagido a esse
homem? Eu o teria convidado para jantar, como Zaqueu? Ter-me-ia afastado
tristemente como o jovem legislador? Eu o teria traído como Judas e Pedro?
Jesus, descobri, tinha uma
pequena semelhança com a figura do Senhor Rogers que conheci na escola
dominical, sendo notavelmente diverso da pessoa que estudei na faculdade
cristã. Uma coisa eu sei, ele era muito menos manso. Em minha primeira imagem,
percebi, a personalidade de Jesus combinava com a do Sr. Spock de Jornada nas
estrelas: permanecia calmo, sereno e controlado enquanto caminhava como um robô
entre os seres humanos nervosos na nave espacial Terra. Não foi o que encontrei
descrito nos evangelhos e nos melhores filmes. Outras pessoas influíram em
Jesus profundamente: a obstinação o frustrava, a justiça própria o enfurecia, a
fé simples o entusiasmava. Na verdade, ele parecia mais emotivo e espontâneo do
que as pessoas comuns, não menos. Mais passional, não menos.
Quanto mais eu estudava Jesus,
mais difícil se tornava classificá-lo. Ele falou pouco sobre a ocupação romana,
o assunto principal das conversas de seus conterrâneos, mas pegou um chicote
para expulsar do templo judeu os pequenos aproveitadores. Insistia na
obediência à lei de Moisés, enquanto adquiria a reputação de transgressor da
lei. Poderia ser tomado de simpatia por um estrangeiro, mas afastou o melhor
amigo com a dura repreensão: “Para trás de mim, Satanás!”. Tinha opiniões
inflexíveis sobre os homens ricos e as mulheres de vida fácil, mas ambos os
tipos desfrutavam de sua companhia.
Um dia os milagres pareciam fluir
de Jesus; no dia seguinte seu poder ficava bloqueado pela falta de fé das
pessoas. Um dia falava em pormenores sobre a segunda vinda; no outro, não sabia
o dia nem a hora. Fugiu de ser preso uma vez e marchou inexoravelmente rumo à
prisão em outra. Falou eloqüentemente sobre a pacificação, e depois disse a
seus discípulos que procurassem espadas. Suas reivindicações extravagantes
colocaram-no no centro da controvérsia, mas, quando fazia alguma coisa
realmente miraculosa, procurava ocultá-lo. Como disse Walter Wink, se Jesus
nunca tivesse vivido não poderíamos tê-lo inventado.
Duas palavras ninguém pensaria em
aplicar ao Jesus dos evangelhos: enfadonho e previsível. Então, por que a
igreja domou esse caráter — “aparou”, nas palavras de Dorothy Sayers, “com
muita eficiência as garras do Leão de Judá, declarando-o um bichinho de
estimação adequadamente domesticado para pálidos vigários e velhas senhoras
piedosas”?
Barbara Tuchman, a historiadora
que recebeu o prêmio Pulitzer, insiste em uma regra para escrever história:
nada de “pequenas previsões”. Quando ela estava escrevendo sobre a Batalha de
Bulge, na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, resistiu à tentação de incluir
um aparte: “Naturalmente todos sabemos como isso acabou”. Na verdade, as tropas
aliadas envolvidas na Batalha, de Bulge não sabiam como a batalha terminaria.
Pela aparência das coisas, poderiam bem ser escorraçadas de volta para as
praias da Normandia, deonde tinham vindo. Um historiador que deseja reter
qualquer semelhança da tensão e do drama nos acontecimentos conforme eles se
desenrolam não se atreve a fazer previsões de outro ponto de vista que tudo vê.
Se o fizer, toda a tensão se desfará. Antes, um bom historiador recria para o
leitor as condições da história que está sendo descrita, dando a impressão de
que “você esteve lá”.
Esse é, concluí, o problema da
maioria de nossas obras e idéias sobre Jesus. Lemos os evangelhos pelas lentes
de pequenas previsões de concílios eclesiásticos como o de Nicéia e o de
Calcedônia, mediante as tentativas estudadas da igreja de lhe dar sentido.
Jesus foi um ser humano, judeu da
Galiléia com nome e família, pessoa de certo modo exatamente igual a todos.
Mas, de outro modo, era um pouco diferente do que qualquer um que já tenha
vivido na terra antes. A igreja levou cinco séculos de debates ativos para
concordar sobre algum tipo de equilíbrio epistemológico entre “como todo mundo”
e “alguma coisa diferente”. Como disse Pascal: “A Igreja tem tido tanta
dificuldade em mostrar que Jesus Cristo foi homem, contra aqueles que o
negaram, como em mostrar que ele foi Deus; e as probabilidades são igualmente
grandes”.
Deixem-me tornar claro que aceito
os credos. Mas neste livro espero retroceder para além dessas formulações.
Espero, até onde é possível,
olhar para a vida de Jesus “de baixo”, como um espectador, um dos muitos que o
seguiram.
Se eu fosse um cineasta japonês,
com cinqüenta milhões de dólares e nenhum roteiro além do texto dos evangelhos,
que tipo de filme eu faria? Espero, nas palavras de Lutero, “introduzir Cristo
o mais profundamente possível na carne”.
No processo, às vezes me tenho
sentido como um turista andando ao redor de um grande monumento, admirado e
dominado. Ando ao redor do monumento de Jesus inspecionando suas partes
constituintes — as histórias do nascimento, os ensinamentos, os milagres, os
inimigos e os discípulos — a fim de refletir sobre isso e tentar compreender o homem
que mudou a história.
Outras vezes me tenho sentido
como um restaurador de obras de arte estendido no andaime da Capela Cistina,
raspando o encardido da história com um produto de limpeza. Se a sujeira está
dura demais, será que vou descobrir o original por baixo de todas essas
camadas?
Neste livro tento contar a
história de Jesus, não a minha própria história. Inevitavelmente, entretanto,
uma busca de Jesus acaba sendo a busca do próprio eu. Ninguém que encontre
Jesus continua sendo o mesmo. Descobri que as dúvidas que me afligiam vindas de
muitas fontes — da ciência, da religião comparada, de um defeito inato de
ceticismo, da aversão à igreja — assumiram uma nova luz quando eu trouxe essas
dúvidas ao homem chamado Jesus.
Para dizer mais a esta altura,
neste primeiro capítulo, eu transgrediria o princípio predileto de Barbara
Tuchman.
Philip Yancey
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